terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A velha que cozinhava a lua

Seria por volta das três da noite, não conseguia dormir, voltas e mais voltas, estava um calor infernal naquele quarto de uma pensão barata, fazia a camisa colar-se ao meu corpo, por causa do suor. Definitivamente aquela velha história não me saía da cabeça.
De manhã saí bem cedo, paguei ao dono da pensão a última noite de estadia, com os últimos trocados que me restavam; atrás do balcão o mesmo velhote, curvado pelos anos, rosto coberto por rugas, os seus olhos sem alma, sem brilho nem cor, mostravam perfeitamente como mal a vida o tivera tratado; nem uma palavra, quando lhe virava as costas para sair, ouvi aquela voz tremida e rouca a dizer-me para ter cuidado, pois a viagem até à cidade era difícil e perigosa.

Havia oito dias que tinha chegado àquela pequena cidade, estava no meu terceiro mês de viagem, quase nos últimos dias, faltava-me apenas percorrer cerca de dois mil km, até chegar ao aeroporto internacional da cidade mais próxima, e aí apanhar um avião que me levaria de volta a casa. Estava cansado, aqueles três meses sempre de terra em terra, tinham parecido três anos, e não só por me sentir cansado, mas porque percebi que tinha vivido mais nos últimos três meses que em três anos, ou talvez durante toda a minha vida. Enfim ali estava eu, de saída daquela pequena aldeia situada numa encosta muito suave, virada a norte, perto da fronteira com o Estado do Espírito santo, como era linda a aldeia, casinhas brancas, ruas muito estreitinhas, no centro havia uma igreja muito velha, estilo quinhentista, talvez construída pelos primeiros colonos portugueses a chegar a terras de vera cruz. Ao fim do dia conseguia sentir-se a brisa trazida do mar pelo vento norte que se fazia sentir quase todas as tardes. Tinha planeado ficar dois ou três dias, mas já tinham passado oito dias, algo de estranho me prendia aquele sitio, havia uma mística, uma magia no ar, algo difícil de compreender, um sentimento que nos toca, que vem não se sabe de onde, mas que rapidamente nos contagiava e deixava quase num estado de transe, os próprios habitantes da aldeia, viviam o dia-a-dia sem sobressaltos num estado de harmonia quase perfeito.
Ao oitavo dia decidira finalmente abandonar a aldeia, estava na hora de seguir viagem, e para não falar que estava sem dinheiro, daqui para diante teria de sobreviver de caridade ou ganhar alguns trocados a trabalhar fosse no que fosse. Ao partir, tive a sensação de deixar uma parte de mim para trás, que estranho, tinha passado por tantos sítios lindíssimos, nunca nenhum me tivera causado tão grande tristeza em abandonar como aquele. Seguia então pela estrada principal, tinha-me atrasado um pouco e já saíra tarde, teria de me apressar para chegar à próxima cidade antes de o anoitecer, mas com sorte apanhava boleia e não teria de me preocupar. A estrada era estreita, sempre a direito entre árvores alinhadas, lembrando os soldados do exército mais perfeito de um qualquer imperador, estranhamente não havia trânsito, não se ouvia nem o cantar dos pássaros, que estranho no meio de uma floresta. Continuava assim o meu caminho, mas sem conseguir tirar a velha história do pensamento. O velho da pensão tinha-me contado, que aquela aldeia estava enfeitiçada, tinha poderes ocultos, quem por ali passava ou vivia uma vez na aldeia não mais conseguiria sair, deveria mesmo ser uma lenda, eu estivera lá uns dias, e agora estava de saída, a caminho de casa… hahaha… lendas e histórias do arco-da-velha, como podem acreditar nisso…
Caminhava despreocupado, sentia-me diferente, tinha o coração a transbordar de sentimentos, um turbilhão de emoções, e apesar de ainda estar muito longe sentia-me cada vez mais próximo de casa. Num gesto impensado meti a mão no bolso à procura da chave da porta, como quem se prepara para entrar, e qual o espanto quando a senti com as pontas dos dedos… Tinha a certeza que a tinha deixado em casa, não a trouxera caso ainda a perdesse, e de qualquer modo não precisaria dela, quando chegasse a casa teria com certeza alguém à minha espera, e agora ali estava ela na palma da minha mão… não compreendia, talvez por engano a tenha colocado dentro dos bolsos, só poderia ser isso. Às vezes fazemos coisas sem prestar atenção, e depois damos voltas e voltas à cabeça quando somos surpreendidos com situações como esta, não estaria agora por aqui a dar cabo da cabeça, se a tivesse colocado dentro da gaveta das “procuras”, tivera dado esse nome a uma gaveta da minha cómoda que resolvera encher de coisas úteis que precisasse constantemente, assim saberia sempre onde procurá-las, dentro da gaveta das “procuras”. O sol já ia alto no céu e estava uma temperatura bastante agradável, que belo dia que escolhera para partir, naquela zona onde acertar no tempo é como acertar no loto, apanhar um dia sem chuva é obra. Nisto vi um vulto aproximar-se ao fundo da estrada, lentamente a distância foi-se encurtando entre nós e o vulto tornava-se cada vez mais visível, era uma velhinha que caminhava na minha direcção. Ao cruzarmo-nos a senhora parou, e depois de me observar uns momentos cumprimentou-me com um caloroso bom dia, logo de seguida atacou-me com uma pergunta, de onde vinha e para onde estava a ir, depois de lhe responder, deu um sorriso tão sereno que parecia sair do botão de uma rosa e não da boca de uma velha, que encontrei no fim do mundo. Não me perguntou mais nada, virou as costas e continuou o seu caminho, um pouco mais à frente, sem se virar, desejou-me boa viagem e bom regresso a casa, e que para seguir o meu caminho porque esse sempre nos leva aonde nos esperam. Como se isso fosse verdade pensei, então nós vamos onde queremos, onde desejamos, onde fosse preciso, raio da velha, os velhos sempre a dizer as coisas que estamos fartos de saber, como se de uma tese filosófica se tratasse. Aumentei o meu passo depois deste breve encontro, por algum motivo sem explicação não tinha gostado da velhinha, algo de estranho nela me dava um desconforto emocional, chegando até a dar-me um frio no estômago, precedido de um nó na goela, a sua voz, o brilho dos seus olhos, a suavidade do seu sorriso, pareciam vindos de uma criança, não de uma velha que mal se aguentava nas pernas, que raio de terra esta…
Continuei sempre a direito e sem olhar para trás, não fosse acontecer-me o mesmo que aconteceu à mulher de Ló quando fugiam de Sodoma e Gomorra que não resistiu a olhar para trás e transformou-se numa estátua de sal. Aumentava cada vez mais o meu passo, dava-me a sensação de estar um tapete rolante de um enorme aeroporto, andava e parecia não sair no mesmo sítio, até que uns metros mais à frente avistei um cruzamento, respirei de alívio, afinal progredia no caminho. Ao chegar logo me deparei com um pequeno problema, na breve explicação do caminho que o velho da pensão me fizera, não me recordo de alguma vez ter mencionado aquele cruzamento, lembro-me que dissera para seguir sempre a direito, e que seria fácil pois aquela era a única estrada até à próxima cidade. Que falta me fazia agora ali a velha que encontrara lá trás, pensei. A estrada parecia a língua de uma serpente, uma única que agora se dividia em duas, mas que raio, e agora? Ainda pensei em voltar para trás, talvez conseguisse apanhar a velha e perguntar-lhe o caminho certo, mas com isso perderia muito tempo, não tinha outra saída, teria de escolher uma. Costumam dizer que as estradas nos levam sempre a algum lugar, ora essa, então são as estradas que nos levam, ou será a nossa vontade?
Hoje quase meio cento de anos volvidos penso que foi a vontade que me levou e não a estrada, e quando conto esta história ninguém acredita nela, mas, a seu tempo, hão-de acreditar.
No fim da estrada havia uma cabana velha, feita de madeira, um pouco gasta, com telhas de barro envelhecidas pelo tempo, com musgo suficiente para fazer um presépio de qualquer família no natal, à esquerda um enorme carvalho, que pela sua aparência, seria testemunha da passagem de tantos homens e tempestades por aquelas bandas, e ele ali permanecia sereno e sublime como se pertencesse a outro mundo, à direita havia um pequeno curral, a prisão de três cabras, com umas tetas tão inchadas, que certamente rebentariam se umas mãos mais desajeitadas as ordenhassem. Parecia não estar por ali ninguém, raios me partam, teria de voltar para trás e já se fazia tarde, não conseguiria chegar á cidade antes de o anoitecer. Estava a fazer-me ao caminho de volta quando do nada surgiu uma voz a oferecer-me pousada, era um velhota que me oferecia pousada, mas que raio, será que só haveria velhas por aquelas bandas… Depois de umas breves palavras fui convencido a ficar, era perigoso fazer o caminho de noite, e se mesmo de dia me tivera enganado imagina de noite, e depois como poderia uma velha, mais velha que o carvalho, fazer-me algum mal. Fui convidado a entrar, a velha foi apanhar lenha para fazer o jantar, ainda me ofereci para ajudar mas esta recusou, antes ainda pediu-me que me instalasse à vontade. O interior da cabana estava a brilhar, tal o nível de limpeza, vista de dentro parecia dez vezes maior, tinha uma salinha, com uma lareira, em frente à lareira uma mesa posta, dois pratos, duas colheres, dois guardanapos, dois copos, dois pedaços de pão, que estranho, não tinha visto mais ninguém, talvez estivesse á espera do marido para jantar. Do lado direito uma cozinha que apesar de improvisada tinha muito bom aspecto, na parede em frente, duas portas, que davam para duas divisões da parte de trás da cabana, possivelmente os quartos, entre as duas portas estavam penduradas na parede duas molduras alinhadas exactamente iguais, com o aro dourado e vidro baço já um pouco gastas e sujas, até admira tudo tão limpinho, mas espera lá, na cozinha não havia fogão, não havia bules, canecas, pratos, tachos, facas, panos, nada, apenas e só uma panela velha completamente preta, tisnada do fogo, mais uma coisa que não batia certo, mas tantas culturas, tantos hábitos diferentes, e num ambiente de extrema pobreza, muito boa era a moradia, puxei uma cadeira e sentei-me em frente á lareira, ainda a pensar onde iria comer e sentar-me ao jantar…. Deixa aproveitar agora a cadeira e descansar as pernas antes que chegue o dono, que amanha a estrada estará à minha espera. Passado um quarto de hora estava ferrado no sono.
Acordei com um ligeiro toque no ombro, era a velhota, tinha voltado enquanto eu conferenciava com o meu amigo Morfeu e estava agora preparar o jantar, convidando-me se a queria acompanhar até ao exterior da cabana. Tinha acendido uma fogueira na rua, o lado do lume um montinho de lenha que serviria de combustível, e duas pedras que serviriam de cadeiras na ausência destas, mas a minha atenção centrava-se na panela em cima das chamas, com o manjar dos deuses no seu interior, estava esfomeado, parecera que tinha dormido um ano e não um quarto de hora… A noite estava linda, quente, o céu limpo, e lá bem no centro a lua cercada por estrelas, como se fosse um grande general rodeado pelos seus soldados, prontos a se lançarem sobre nós, num desenfreado ataque, enfim uma noite perfeita. A anciã mexia continuamente o conteúdo da panela, em movimentos contínuos e circulares, aos poucos ia adicionado o que parecia ser farinha, enquanto cantava muito baixinho o que parecia ser uma oração ou agradecimento… enfim devia estar a agradecer aos deuses pelo jantar, pensei. Quase nunca trocamos um palavra e as poucas perguntas que lhe fiz, ficaram sem resposta, parecia não me ouvir, e o pouco que falou foi para me roubar as palavras que eu próprio me preparava para dizer, parecia ler-me os pensamentos, apenas se dignou a responder quando lhe perguntei o que estava a preparar para o jantar, e de quem estava á espera para jantar, pois a mesa estava posta antes de eu chegar.
Num determinado momento levantou a cabeça e perguntou-me onde ficava a minha casa, antes mesmo de me dar tempo para responder, pediu-me para olhar para dentro da panela, mas que coisa estranha, o que estaria naquele tacho tisnado? Espalhava-se um aroma no ar, um cheiro adocicado, que me deixava um pouco zonzo, como quando o amigo Baco começa a apodera-se dos nossos sentidos, qual o meu espanto quando ao debruçar-me sobre a panela, me vejo num grande dilema, então e a comida? Nada, não havia nada dentro da panela, apenas o reflexo da lua… a velha cozinhava a lua para o nosso jantar… a velha cozinhava a lua… Mas como seria possível estar o reflexo da lua dentro da panela, e a ele juntar-se o meu reflexo, que por sua vez se sobrepunha ao da lua; mas eu não olhava para mim, mas sim para dentro de mim… sem lhe pedir a velha começou a responder a todas as perguntas que lhe fizera até então.
Lembras-te esta tarde quando passei por ti, e te disse para seguires o teu caminho pois ele sempre no nos levará, aonde nos esperam, pois bem eu tenho estado à tua espera. Meu deus era ela agora sim a reconheço, a mesma voz, o mesmo sorriso, o mesmo olhar, mas como podia ser possível, encontramo-nos em sentido contrário. Era por ti que eu estava à espera, por isso a mesa estava posta, as duas cadeiras, os talheres aos pares, os retratos pendurados na parede; os retratos, não estavam nenhuns retratos... dei um salto entro pela cabana adentro e num ápice encontrava-me em frente das molduras penduradas na parede entre as duas portas, mas como, como é possível, não podia ser verdade, só por modos de bruxaria ou magia… era o meu retrato que ali estava, e ao lado, o de uma mulher, de feições delicadas, lábios bem traçados, olhos castanhos da cor da terra, longos cabelos pretos, lisos e sedosos, emanava uma paz de espírito, ao mesmo tempo parecia hipnotizada pelo fotógrafo que lhe provocara uma cegueira momentânea ao disparar o flash da Polaroid, mas nem isso afastara o brilho dos seus olhos, tinha a sensação de conhecer aquele sorriso, parecia familiar, mas como poderia estar ali a minha fotografia? Como? Estava louco, um pesadelo, só poderia ser, não era possível, peguei na mochila, um pouco já em pânico, e saí dali o mais rápido possível, não me importei com nada, tinha de sair dali, nem me importava com mais nada… queria apenas fugir, tentar chegar à cidade, ou mesmo voltar para trás para a aldeia. Corri como o Belzebu foge da cruz, nem pensei mais na velha, que nem se moveu, nem me disse uma palavra ao ver-me sair daquela maneira, queria apenas sair dali, nunca mais queria ver aquela velha e aquela cabana amaldiçoada, o velho da pensão tinha razão, era uma terra amaldiçoada, aquele pesadelo tornara-se realidade. Mas não consegui, foi mais forte do que eu, quanto mais me afastava maior era o aperto que sentia no peito, um nó na garganta que me sufocava, e no estômago parecia ter borboletas a bater as asas no seu interior, sentia-me preso, como se num pavoroso pesadelo estivesse a tentar escapar do meu carrasco, que me lançava o derradeiro golpe, então assim sucumbi, eu olhei…olhei para trás, aquele simples olhar por cima do ombro transformou-me. Lá estava tudo igual, menos a velha, no lugar Dela estava uma rapariga linda de vestido branco, cabelos pretos lisos, era a rapariga da fotografia, que estava ao lado do meu retrato…Quando voltei a olhar em frente não era mais de noite, era já dia, e à minha frente corria um miudinho moreno, cabelos castanhos-escuros, pés descalços que correndo sempre sem olhar para trás ia dizendo… Não vale a pena correr, correr para quê? Queres apanhar o autocarro do destino? Olhe que o autocarro do destino não tem estação… Tu já estás dentro dele.
Aquele menino era eu.

Dário

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